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Este alagoano de São José da Tapera, nascido em 1966, é maravilhado com a escrita e encantado com as letras. Procura traduzir em seu trabalho as inquietações da alma humana em suas relações interpessoais e consigo mesmo. Autor dos livros: O homem que virou calango (contos); Retratos Urbanos; Síndroma de Imunodeficiência Depressiva; Da dor do não, poemas; coautor de Caoticidade Urbanopoética do eu nulo, poesia; participação na 1ª Antologia da Confrafia: Nós, Poetas.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

O Assassino do Sobretudo de polietileno preto - Assassinato sob a chuva rala

A chuva fina e intermitente que caía produzia um espelho na rua onde os únicos reflexos eram seus medos e suas angustias.
Dali donde se encontrava, na esquina, recostado na parede, sob a marquise, com a luz opaca da lua camuflando-o e travestido com um sobretudo de polietileno preto, podia divisar todo o movimento nas quatro direções. Precisava apenas espiar e esperar. Ele sabia que aquela era a hora. O tremor nos lábios, o olhar nervoso, a respiração ofegante denunciavam sua condição de completa submissão a um estado que ele próprio sabia não ser forte o bastante para superar. Tornara-se incontrolável. Não queria em sua sã consciência fazer aquilo, é verdade, mas tinha de fazê-lo. As ruas, os becos, a luminescência parda da noite, tudo ali contribuía e o incitava. Amainar sua ânsia era condição subjacente para diminuir seu estado de consciência deplorável naquele momento. Olhou o relógio: 2:36. Uma moto cruzou a rua em velocidade. Não se distraiu. Observou as casas pequenas e imaginou suas vidas, por trás dos muros, também pequenas.
Lembrou a primeira vez. Como em vídeo tape viu-se a si próprio esparramado no sofá a ver televisão. Algo o incomodava naquela noite. A insônia, talvez. Não sabia. Nunca soube. Era inverno. A chuva fina espelhava a rua. Viu seu semblante sereno, seu olhar tranquilo. Seguiu a si mesmo quando levantou e perscrutou a rua antes de abrir a porta. A rua em silêncio, estava agora nua. Caminhou a passos lentos encoberto pela sombra da noite. Na praça que ficava a poucos metros dali acendeu um baseado. Na primeira tragada, deliciando-se com o roçar dos lábios no papel num simulacro de beijo, aspirou a fumaça com volúpia abraçando-a em seu peito como alguém abraça a outrem de saudades e baforou observando a fumaça evoluir pelo espaço desenvolvendo movimentos aleatórios, dançando ao sabor da brisa e da imaginação, compondo imagens que só a puerilidade de uma criança é capaz de perceber. Ficou assim por minutos, saboreando o instante, deleitando-se com o silêncio, observando o farfalhar das folhas como se o tempo inerte estivesse. Ouviu vozes e risos. Inconscientemente circundou a árvore onde estava recostado para não ser visto. Não queria naquele momento traçar uma conversa inútil com pessoas, também inúteis, cheirosas a álcool. Acompanhou-os com a vista até desaparecerem do raio de visão.
Observou a fachada de sua casa deteriorada pelo desleixo, como a si. Isto o fez lembrar de que quando criança, naquela mesma casa, as mãos brutas de seu pai, o cheiro de álcool, sua mãe em lágrimas, sua mãe em dor. O fim. E o inferno que viria após este dia. Definitivamente precisava sair dali. Os vizinhos, aqueles móveis rotos, aquele cheiro amofinado, aquelas fotos de família simulando um lar feliz que não representava a realidade do que foi, o entediavam. Ficou imerso no não-ser de sua não-existência. Ao sorver sua última tragada não se deu conta de que alguém se aproximava e com um movimento de defesa rápido cravou suas mãos no pescoço e pressionando com força e violência não permitia reação. Nos olhos da vítima via a si próprio, via os dedos de seu pai num abraço mortal, via a dor de sua mãe, viu o temor que sentiu naquele e após aquele dia. Viu-se afastando-se  em silêncio e deixando atrás de si o silêncio do não-existir.
O silêncio foi quebrado. A linha tênue do tempo que une sonho e realidade foi rompida trazendo-o a realidade por passos na calçada. Olhou o relógio: 2:39. Espreitou e lançou-se como algoz, esganando sua vítima com força e violência sem permitir reação, sem temor ou tremor. Olhares fixos. Bocas mudas. Tudo como dantes.
Tendo o silêncio e a noite e a rua por testemunha, após poucos minutos, e com a quietude da vítima, lançou-a ao chão produzindo um som abafado. Na vítima, os olhos intumescidos pela dor e na boca um grito de dor... silenciado.
                Acendeu um cigarro, ajeitou o sobretudo de polietileno preto  e com a luz opaca da lua camuflando-o desceu a rua em silêncio fitando sua própria sombra na calçada molhada. Seus olhos serenos, não traziam raiva, não traziam medo, na boca o cigarro e um sorriso leve.

                A chuva fina que caía chorava a dor do não-existir.