A chuva fina e intermitente que
caía produzia um espelho na rua onde os únicos reflexos eram seus medos e suas
angustias.
Dali donde se encontrava, na
esquina, recostado na parede, sob a marquise, com a luz opaca da lua
camuflando-o e travestido com um sobretudo de polietileno preto, podia divisar
todo o movimento nas quatro direções. Precisava apenas espiar e esperar. Ele
sabia que aquela era a hora. O tremor nos lábios, o olhar nervoso, a respiração
ofegante denunciavam sua condição de completa submissão a um estado que ele
próprio sabia não ser forte o bastante para superar. Tornara-se incontrolável. Não
queria em sua sã consciência fazer aquilo, é verdade, mas tinha de fazê-lo. As
ruas, os becos, a luminescência parda da noite, tudo ali contribuía e o
incitava. Amainar sua ânsia era condição subjacente para diminuir seu estado de
consciência deplorável naquele momento. Olhou o relógio: 2:36. Uma moto cruzou
a rua em velocidade. Não se distraiu. Observou as casas pequenas e imaginou
suas vidas, por trás dos muros, também pequenas.
Lembrou a primeira vez. Como em
vídeo tape viu-se a si próprio esparramado no sofá a ver televisão. Algo o
incomodava naquela noite. A insônia, talvez. Não sabia. Nunca soube. Era
inverno. A chuva fina espelhava a rua. Viu seu semblante sereno, seu olhar
tranquilo. Seguiu a si mesmo quando levantou e perscrutou a rua antes de abrir
a porta. A rua em silêncio, estava agora nua. Caminhou a passos lentos
encoberto pela sombra da noite. Na praça que ficava a poucos metros dali
acendeu um baseado. Na primeira tragada, deliciando-se com o roçar dos lábios
no papel num simulacro de beijo, aspirou a fumaça com volúpia abraçando-a em
seu peito como alguém abraça a outrem de saudades e baforou observando a fumaça
evoluir pelo espaço desenvolvendo movimentos aleatórios, dançando ao sabor da
brisa e da imaginação, compondo imagens que só a puerilidade de uma criança é
capaz de perceber. Ficou assim por minutos, saboreando o instante,
deleitando-se com o silêncio, observando o farfalhar das folhas como se o tempo
inerte estivesse. Ouviu vozes e risos. Inconscientemente circundou a árvore
onde estava recostado para não ser visto. Não queria naquele momento traçar uma
conversa inútil com pessoas, também inúteis, cheirosas a álcool. Acompanhou-os
com a vista até desaparecerem do raio de visão.
Observou a fachada de sua casa
deteriorada pelo desleixo, como a si. Isto o fez lembrar de que quando criança,
naquela mesma casa, as mãos brutas de seu pai, o cheiro de álcool, sua mãe em
lágrimas, sua mãe em dor. O fim. E o inferno que viria após este dia. Definitivamente
precisava sair dali. Os vizinhos, aqueles móveis rotos, aquele cheiro
amofinado, aquelas fotos de família simulando um lar feliz que não representava
a realidade do que foi, o entediavam. Ficou imerso no não-ser de sua
não-existência. Ao sorver sua última tragada não se deu conta de que alguém se
aproximava e com um movimento de defesa rápido cravou suas mãos no pescoço e
pressionando com força e violência não permitia reação. Nos olhos da vítima via
a si próprio, via os dedos de seu pai num abraço mortal, via a dor de sua mãe, viu
o temor que sentiu naquele e após aquele dia. Viu-se afastando-se em silêncio e deixando atrás de si o silêncio
do não-existir.
O silêncio foi quebrado. A linha
tênue do tempo que une sonho e realidade foi rompida trazendo-o a realidade por
passos na calçada. Olhou o relógio: 2:39. Espreitou e lançou-se como algoz,
esganando sua vítima com força e violência sem permitir reação, sem temor ou
tremor. Olhares fixos. Bocas mudas. Tudo como dantes.
Tendo o silêncio e a noite e a
rua por testemunha, após poucos minutos, e com a quietude da vítima, lançou-a
ao chão produzindo um som abafado. Na vítima, os olhos intumescidos pela dor e
na boca um grito de dor... silenciado.
Acendeu
um cigarro, ajeitou o sobretudo de polietileno preto e com a luz opaca da lua camuflando-o desceu
a rua em silêncio fitando sua própria sombra na calçada molhada. Seus olhos
serenos, não traziam raiva, não traziam medo, na boca o cigarro e um sorriso
leve.
A chuva
fina que caía chorava a dor do não-existir.