_Alô, é da rádio?
A voz soou agressiva e apressada. E sem dar tempo para o outro lado se
manifestar arrematou...cansei, minha senhora, cansei de ligar pra poliça... e
ela me dizê que num pode fazê nada. Porquê? ... Eu sei. Sabe porquê? Porque
nóis é pobe. Tá me entenden’o. A sua voz ficava cada vez mais nervosa. Óie,
passei a noite toda ligando pra poliça, ta me entenden’o. Esse fi da gota
serena fica fazen’o bagunça aqui na rua, na minha janela, todo dia. E num é de
hoje não. Tá me entenden’o. Sou trabaiadô, moça. Acordo todo dia cum galo
cantan’o, e esse poliça preguiçoso diz que tá sem viatura. Venha de ônibus,
ôxe. Eu vô trabaiá de ônibus. A gente aqui tamo revoltado. Todo dia esses
maconhero perturba nóis aqui dizen’o que vai matá a nóis. Que vai esfolá nóis.
Que quem manda na rua é eles. Pois, quem vai matá hoje sou eu. Vociferou gesticulando
os braços. A poliça nunca feiz nada. Mas hoje vô matááá. To cum ele todo
amarrado aqui no oreião, e vô acabá cum a raça desse fio da besta preta. Ofegante.
Ói, adescurpe, moça. Eu tô aperreado. Minha mulé foi s’imbora, levô meus fio,
levô até meu cachorrim. E ainda vem um fi da égua desse fazê bagunça na minha
porta. Eu num vô matá? Vô. Ói, tô disimpregado. Desde qu’ela foi s’imbora minha
vida se distrambelhou. Tô disimpregado. Num tenho istudo... Mas sô trabaiadô,
moça. Num fumo maconha, não.
Do outro lado da linha alguém balbuciou algo como
“tenha calma”.
_Carma, nada. Esse fi da besta preta faz bagunça aqui na rua há
muito tempo, ta me entenden’o. Óie, tomei uns goró de noite e agora vô arresorvê
na bala, do meu jeito. Se num tem poliça eu arresorvo na bala. Carma, nada. A
sinhora só sabe dizê isso. Carma... carma... carma coisa ninhuma. Minha vida já
tá esculhambada, mermo, vô esculhambá o
resto. Ói, eu gostava muito daquela nega. Ela mexia bem cum’s meu negoço... tu
é mulé, tu sabe do chamego. Aquela mulé num podia tê me deixado. Ói, ela levou
meus cinco fio. Pense nuns calanguim arretado. Nesse ínterim formou-se um
ajuntamento ao derredor com gritos de mata, esfola, e onde a raiva de alguns
contrastava com o olhar de penúria de outros. A turba é burra. Enquanto isso,
no chão, amarrado a um orelhão com uma cara de desespero um rapazote de uns 17
anos rogava amedrontadamente: num me mate, não. Por favor. Meu pai tem uma loja
no comércio. Eu sou de menor. Meu pai te dá um emprego. Ele é vereador. Ao
mesmo tempo o clamor misturava-se ao ódio. Me solte seu corno. Sua mulé foi s’imbora
porque você é froxo. Eu vou te matá, seu véio maluco.
MAAATA! MAAATA!
O tumulto
só crescia. Olhos e bocas num afã. A televisão já chegara, os repórteres de
rádio, o carrinho de picolé, o de CD pirata, os insultos, os apupos, as
palavras de ordem. Todo esse burburinho deixava o agressor e vítima mais
nervosos. Saiu na mídia não tardou para a polícia chegar com as sirenas em
alarde tentando dispersar a populacha. Em vão. O agressor, com o revolver em
punho, esbravejava: eu vou matáááá. E a populacha convulsionava: maaata! Maaata!
Esse safado me aperreou a noite toda. Minha mulé foi s’imbora, levou todos meu
fio, até meu cachorrim. Lágrimas. Agora eu vou matáááá, gritava batendo a arma
no peito. Enquanto isso, no chão, amarrado ao orelhão, a vítima, com o estupor
estampado na cara, os olhos esbugalhados como que antevendo os pássaros da
morte golpearem sua porta, como que sentindo as dores pela surra que talvez
venha a levar, como que sentindo o aço do projétil perfurando-lhe a pele,
cortando-lhe a carne, dilacerando-lhe os órgãos, como que sentindo o sangue
escorrendo-lhe em profusão ensopando-lhe a camisa já rota pelo uso, como que
sentindo os músculos desobedientes fraquejarem, as pernas indolentes
curvarem-se sem forças e cair com todo o peso de joelhos como a pedir perdão ao
seu agressor, e como que de supetão, em morte, pela dor última, meter a cara no
chão.
Mas ao mesmo tempo a presença da polícia recobrava-lhe o ânimo. Renovava-lhe
a esperança. Me ajudem pelo amor de deus, rogava. Esse filho da puta tá doidão.
Tá maconhado. Eu não fiz nada. Meu pai é rico, ele é vereador. Quase que
instantaneamente o agressor vociferava: Vô te matááá, fi d’uma égua. Larga a
arma! Ordenava a polícia. Maaata! Maaata! Ecoava. A vítima choramingando
repetia: meu pai é rico, moço. Ele te dá um emprego. A polícia ordenava. Eu
liguei várias veiz a noite toda e vocês num viero. Esbravejava agitando os
braços. Todos ao mesmo tempo em ordens, em lamúrias, em ameaças, dificultava a
comunicação, acirrando cada vez mais os ânimos. Levava a ira. Os gritos de maaata.
As ordens de calma. O tempo passando. O sol das dez horas. Os gritos da
populacha. Os policiais nervosos. A vítima. O agressor. A televisão. O rádio. As
crianças. O vendedor de CD pirata. A polícia. O agressor de arma em punho
ameaçante. A vítima em desespero, ora choramingante, ora desafiante. Os gritos.
A polícia. O sol das onze horas. O agressor de arma em punho com os olhos em vermelho
sangue, a boca em impropérios. A polícia. A vítima em desespero. O sol
causticante. A televisão. A multidão. O agressor. Eu vou matááá! A polícia aproximando-se. A
multidão. Os gritos. Os olhares. O desespero. O vendedor de CD. O agressor. A
arma apontada para a cabeça. A vítima. O olhar em desespero. A polícia. O
agressor. A televisão. O rádio. A vítima. Meu pai é rico. O coro. Maaata! Maaata!
Largue a arma. A polícia. O agressor. Eu vou matááá. Gritos. Largue a arma. Eu
vou matááá! A polícia. Um estampido. O agressor. Um grito. A correria. A televisão
filmando. O agressor. O sangue explodindo em jatos. A queda estatelada com a
cara no chão. O rosto em dor. O agressor. Um tiro no peito. Os olhos
arregalados pela dor. O sangue. A morte por fim. A televisão. A vítima. Um sorriso
de alívio respingado de sangue. Um olhar ainda amedrontado. Uma cusparada no
chão. Uma cutucada de pé. Uma imprecação. Um sorriso de deboche e uma
exclamação: Taí, otaro, fudeu-se.