Quem sou eu

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Este alagoano de São José da Tapera, nascido em 1966, é maravilhado com a escrita e encantado com as letras. Procura traduzir em seu trabalho as inquietações da alma humana em suas relações interpessoais e consigo mesmo. Autor dos livros: O homem que virou calango (contos); Retratos Urbanos; Síndroma de Imunodeficiência Depressiva; Da dor do não, poemas; coautor de Caoticidade Urbanopoética do eu nulo, poesia; participação na 1ª Antologia da Confrafia: Nós, Poetas.

sexta-feira, 4 de abril de 2014



Caía a tarde

Em lágrimas outonais sobre os telhados urbanos

Neste dia que já se

Fez saudade

Acariciando a face nua da rua e

Embebendo a todos com sua

inquietante melancolia



a noite que chegava em nuances pictóricas

por trás dos arranha-céus

com suas antenas e para-raios

seria, talvez,

um refúgio para tantos

que cansados de si mesmo

tentam esconder-se

de suas inquietações

em vão

Da vida nada urbana, uma visão.




 _Alô, é da rádio? 
A voz soou agressiva e apressada. E sem dar tempo para o outro lado se manifestar arrematou...cansei, minha senhora, cansei de ligar pra poliça... e ela me dizê que num pode fazê nada. Porquê? ... Eu sei. Sabe porquê? Porque nóis é pobe. Tá me entenden’o. A sua voz ficava cada vez mais nervosa. Óie, passei a noite toda ligando pra poliça, ta me entenden’o. Esse fi da gota serena fica fazen’o bagunça aqui na rua, na minha janela, todo dia. E num é de hoje não. Tá me entenden’o. Sou trabaiadô, moça. Acordo todo dia cum galo cantan’o, e esse poliça preguiçoso diz que tá sem viatura. Venha de ônibus, ôxe. Eu vô trabaiá de ônibus. A gente aqui tamo revoltado. Todo dia esses maconhero perturba nóis aqui dizen’o que vai matá a nóis. Que vai esfolá nóis. Que quem manda na rua é eles. Pois, quem vai matá hoje sou eu. Vociferou gesticulando os braços. A poliça nunca feiz nada. Mas hoje vô matááá. To cum ele todo amarrado aqui no oreião, e vô acabá cum a raça desse fio da besta preta. Ofegante. Ói, adescurpe, moça. Eu tô aperreado. Minha mulé foi s’imbora, levô meus fio, levô até meu cachorrim. E ainda vem um fi da égua desse fazê bagunça na minha porta. Eu num vô matá? Vô. Ói, tô disimpregado. Desde qu’ela foi s’imbora minha vida se distrambelhou. Tô disimpregado. Num tenho istudo... Mas sô trabaiadô, moça. Num fumo maconha, não. 
Do outro lado da linha alguém balbuciou algo como “tenha calma”. 
_Carma, nada. Esse fi da besta preta faz bagunça aqui na rua há muito tempo, ta me entenden’o. Óie, tomei uns goró de noite e agora vô arresorvê na bala, do meu jeito. Se num tem poliça eu arresorvo na bala. Carma, nada. A sinhora só sabe dizê isso. Carma... carma... carma coisa ninhuma. Minha vida já tá esculhambada, mermo, vô esculhambá  o resto. Ói, eu gostava muito daquela nega. Ela mexia bem cum’s meu negoço... tu é mulé, tu sabe do chamego. Aquela mulé num podia tê me deixado. Ói, ela levou meus cinco fio. Pense nuns calanguim arretado. Nesse ínterim formou-se um ajuntamento ao derredor com gritos de mata, esfola, e onde a raiva de alguns contrastava com o olhar de penúria de outros. A turba é burra. Enquanto isso, no chão, amarrado a um orelhão com uma cara de desespero um rapazote de uns 17 anos rogava amedrontadamente: num me mate, não. Por favor. Meu pai tem uma loja no comércio. Eu sou de menor. Meu pai te dá um emprego. Ele é vereador. Ao mesmo tempo o clamor misturava-se ao ódio. Me solte seu corno. Sua mulé foi s’imbora porque você é froxo. Eu vou te matá, seu véio maluco. 
MAAATA! MAAATA! 
O tumulto só crescia. Olhos e bocas num afã. A televisão já chegara, os repórteres de rádio, o carrinho de picolé, o de CD pirata, os insultos, os apupos, as palavras de ordem. Todo esse burburinho deixava o agressor e vítima mais nervosos. Saiu na mídia não tardou para a polícia chegar com as sirenas em alarde tentando dispersar a populacha. Em vão. O agressor, com o revolver em punho, esbravejava: eu vou matáááá. E a populacha convulsionava: maaata! Maaata! Esse safado me aperreou a noite toda. Minha mulé foi s’imbora, levou todos meu fio, até meu cachorrim. Lágrimas. Agora eu vou matáááá, gritava batendo a arma no peito. Enquanto isso, no chão, amarrado ao orelhão, a vítima, com o estupor estampado na cara, os olhos esbugalhados como que antevendo os pássaros da morte golpearem sua porta, como que sentindo as dores pela surra que talvez venha a levar, como que sentindo o aço do projétil perfurando-lhe a pele, cortando-lhe a carne, dilacerando-lhe os órgãos, como que sentindo o sangue escorrendo-lhe em profusão ensopando-lhe a camisa já rota pelo uso, como que sentindo os músculos desobedientes fraquejarem, as pernas indolentes curvarem-se sem forças e cair com todo o peso de joelhos como a pedir perdão ao seu agressor, e como que de supetão, em morte, pela dor última, meter a cara no chão. 
Mas ao mesmo tempo a presença da polícia recobrava-lhe o ânimo. Renovava-lhe a esperança. Me ajudem pelo amor de deus, rogava. Esse filho da puta tá doidão. Tá maconhado. Eu não fiz nada. Meu pai é rico, ele é vereador. Quase que instantaneamente o agressor vociferava: Vô te matááá, fi d’uma égua. Larga a arma! Ordenava a polícia. Maaata! Maaata! Ecoava. A vítima choramingando repetia: meu pai é rico, moço. Ele te dá um emprego. A polícia ordenava. Eu liguei várias veiz a noite toda e vocês num viero. Esbravejava agitando os braços. Todos ao mesmo tempo em ordens, em lamúrias, em ameaças, dificultava a comunicação, acirrando cada vez mais os ânimos. Levava a ira. Os gritos de maaata. As ordens de calma. O tempo passando. O sol das dez horas. Os gritos da populacha. Os policiais nervosos. A vítima. O agressor. A televisão. O rádio. As crianças. O vendedor de CD pirata. A polícia. O agressor de arma em punho ameaçante. A vítima em desespero, ora choramingante, ora desafiante. Os gritos. A polícia. O sol das onze horas. O agressor de arma em punho com os olhos em vermelho sangue, a boca em impropérios. A polícia. A vítima em desespero. O sol causticante. A televisão. A multidão. O agressor.  Eu vou matááá! A polícia aproximando-se. A multidão. Os gritos. Os olhares. O desespero. O vendedor de CD. O agressor. A arma apontada para a cabeça. A vítima. O olhar em desespero. A polícia. O agressor. A televisão. O rádio. A vítima. Meu pai é rico. O coro. Maaata! Maaata! Largue a arma. A polícia. O agressor. Eu vou matááá. Gritos. Largue a arma. Eu vou matááá! A polícia. Um estampido. O agressor. Um grito. A correria. A televisão filmando. O agressor. O sangue explodindo em jatos. A queda estatelada com a cara no chão. O rosto em dor. O agressor. Um tiro no peito. Os olhos arregalados pela dor. O sangue. A morte por fim. A televisão. A vítima. Um sorriso de alívio respingado de sangue. Um olhar ainda amedrontado. Uma cusparada no chão. Uma cutucada de pé. Uma imprecação. Um sorriso de deboche e uma exclamação: Taí, otaro, fudeu-se.