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Este alagoano de São José da Tapera, nascido em 1966, é maravilhado com a escrita e encantado com as letras. Procura traduzir em seu trabalho as inquietações da alma humana em suas relações interpessoais e consigo mesmo. Autor dos livros: O homem que virou calango (contos); Retratos Urbanos; Síndroma de Imunodeficiência Depressiva; Da dor do não, poemas; coautor de Caoticidade Urbanopoética do eu nulo, poesia; participação na 1ª Antologia da Confrafia: Nós, Poetas.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

O ASSASSINO DO SOBRETUDO DE POLIETILENO PRETO.

Assassinato sob a lua minguante.

A noite caía apressada sobre o casario da cidade. Nos arranha-céus, nas esquinas, nos postes, as luzes, uma após a outra acendem-se, iluminando as ruas. As lojas do centro comercial vão cerrando suas portas. As ruas enchem-se de vidas apressadas.
Da mesma forma que se fez, o ajuntamento desfez-se com o passar das horas.
O silêncio aos poucos envolveu as ruas deixando-a um pouco assustadora. O trabalho no restaurante, hoje, demorou mais do que o habitual. Já havia passado por praticamente todas as funções dentro da empresa, atualmente era caixa. Faltava conhecer o financeiro, seu objetivo naquele momento, e aí estaria pronta para abrir o seu próprio. Era sonho de há muito acalentado. Os olhos brilhavam quando se via no salão em volta das mesas ocupadas e o vai-e-vem dos garçons e o sorriso das pessoas e o cheiro da comida. Isto era ainda um sonho compartilhado com tantos quanto conhecera e com seus pais quando vivos.
O alarme do celular trouxe-a de volta a realidade. Precisava fechar as portas. O relógio marcava 20h00. Era demasiado tarde para sair dali naquela região. A noite tudo parecia mais assustador.
Observou através da vitrine antes de sair. O ponto de ônibus ficava a poucas quadras dali. Visualizou mentalmente qual caminho seguir pra evitar ruas desertas, mas o adiantado da hora a fêz optar pelo caminho mais curto. Este seria também o mais deserto. Fechou a porta e pôs-se a caminho. Era uma morena bonita. Seus cabelos cacheados e seu sorriso aberto angariavam-lhe elogios de homens e mulheres também. Sentia-se feliz. Desde que viera do interior para tentar a sorte, a vida tem sido de trabalho e estudo. O pensionato não é dos melhores, mas precisa poupar o máximo possível para poder abrir o seu sonho. Filha única de pais já falecidos poucas amizades e muito trabalho. Uma praia e um cinema ocasionais. Seu foco, seu objetivo, não podia esquecer. Às vezes chorava, às vezes sorria. O seu ser, só, era um misto de liberdade e prisão.
Um cão revirando o lixo assustou-a. Precisava tomar cuidado. Eram tempos de medo, segundo a imprensa, e não queria correr riscos. Era a primeira vez que saía àquela hora. Sempre procurara os horários de maior movimento. Olhou para trás. Pensou ter ouvido passos. Ninguém. Imaginação apenas. Seus olhos e ouvidos ficaram mais atentos.
A rua neste momento parecia comprimi-la em seus medos e angustias. Num poste uma luz piscou e apagou-se escurecendo a rua. A cada passo parecia que o chão, gelatinoso, engolia seus pés. Medo. Pensou em ligar para alguém. Quem? Era o preço.
A rua parecia estreitar-se abafando-lhe e sufocando-lhe o peito. Sentiu medo. Lembrou que há um maníaco solto na cidade. Não queria ser ela a próxima vítima. Pensou em seus sonhos. Olhou para trás. Interessante como os olhos veem de acordo com o medo. Faltava apenas um quarteirão para o destino. O medo nos trai.
Uma chuva fina começou a cair. Soltou uma imprecação. Pensou ouvir passos. Pensou em correr. Uma das vítimas foi encontrada pelas redondezas. Não queria ser a próxima. Olhou novamente para trás a fim de perscrutar o ambiente. Nada atrás de si. Ao se voltar para a frente sentiu a pressão de dedos maléficos em sua garganta. Sentiu o chão fugir-lhe aos pés. O desespero lhe tomou o coração. O horror inundou-lhe os olhos. Não conseguia gritar. De sua boca apenas grunhidos. Em seus olhos o horror. Em seus olhos a tristeza. A dor que sentia não era pela pressão daquelas mãos assassinas. Sua dor era pelo que elas lhe roubavam, pelos sonhos, pela vida. Uma lágrima, sua última, escorreu em filete de seus olhos misturando-se às gotas da chuva anunciando seu fim. Um baque surdo no chão foi o último som a ser ouvido.
O algoz, do sobretudo, acendeu um cigarro, sorveu um trago e se pôs a caminho. No céu a lua minguante, no rosto um sorriso leve e na boca o cigarro.

A rua em silêncio chora pelos sonhos roubados.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

REMINISCÊNCIAS, QUE É O QUE DE MIM RESTA, CORROEM-ME A ALMA.



       Dali donde me encontro, na janela, em um quarto do terceiro andar, observo o pátio abaixo de mim que se encontra só. Como a mim. Tem sido assim desde há muito. Não me recordo de quando, apenas lembro que foi no outono, período em que as árvores desnudam-se, que adentrei pela primeira vez aqui, donde somente eu saí, e que se tornou a partir de então, um local de idas e vindas. Nossas vidas, tal qual lago em fim de tarde que espelha o ocaso e beija com suas águas tépidas e calmas um cisne que desliza indolente sobre o espelho d’água, era, simplesmente, amor. Amor este que refluía de nossos corpos e embebia o ambiente e inebriava a todos que nos circundava. Éramos felizes. Não que tenhamos deixado de sê-lo a partir dali, mas o amor despiu-se da felicidade e travestiu-se da agonia e da compaixão. Este sentimento, a compaixão, eivado de ambiguidade, que enobrece a quem doa e humilha a quem recebe foi minha companhia mais próxima e sugou todo o amor que havia em mim. A ti, como alívio, o fim. A mim, órfão... dor, desgraça e solidão foi o que restou.
                    
                    Do tempo já assumi minha subserviência e já não sofro mais e já não vivo mais.
                
                    Do dia apenas uma luminescência incipiente que teima em me despertar para a realidade.

         Da noite que me acometeu o espírito e absorveu tudo de mim, malgrado-a por não me ter permitido fitar os olhos daquela que me permitiam ver o mundo por mais tempo; mas, também, bendigo-a por me permitir o sonhar e me aproximar do que um dia foi e por me esconder do que hoje não é.
         Dos amigos que conquistei, propositalmente, afastei-os todos, um após o outro, sem pretexto, para que não acompanhassem a minha definha e não se compadecessem de mim. Ojerizo a compaixão.
          Reminiscências, que é o que de mim resta, corroem-me a alma.

          De há muito que deambulo por este lugar em busca do que perdi. Inicialmente maculado de esperanças, mas o tempo etéreo, irresoluto, fez dissipar aquela enchendo-me a alma e a vida de tristeza, melancolia e desesperança. A esta, não posso permitir a vitória, sob pena de admitir que a morte golpeie minha porta e se aposse de meu espirito. Em vão. Herculeamente tento resistir, mas devo confessar com grande tristeza, que a vitória não me será companheira. Em lixo, a mim custa reconhecer pelo que fui, me transformei após ver-te refastelar-se com o banquete da morte e enternecida beijar-te a face.

          As paredes dali donde me encontro já não mantêm a cor original. Esvaneceram com o tempo. Como a mim. A mobília carcomida pela ferrugem já não mais se presta. No salão principal, nos corredores, nos quartos, na sala de choque que conheço mais do que a mim próprio, o que se reflete é a máscara da tristeza e da solidão. Contraditoriamente, o que antes era vivo, multifacetado, hoje agoniza e chora em dor pela ausência e pelo silêncio de tantos. O drama que ontem aqui era escondido não difere do que se esconde hoje.

           Onde estás, ó, amante doce e terna que me encobrias e me devorava dos anos a vida em mais doce alegria. Onde estás? Pergunto-me melancólico.

                
                       Aqui donde me encontro, da janela do 3º andar, observo o pátio - que tanto conhece meus passos, taciturno, ignorando-me com sua empáfia, está só também. Como a mim.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

O Assassino do Sobretudo de polietileno preto - Assassinato sob a chuva rala

A chuva fina e intermitente que caía produzia um espelho na rua onde os únicos reflexos eram seus medos e suas angustias.
Dali donde se encontrava, na esquina, recostado na parede, sob a marquise, com a luz opaca da lua camuflando-o e travestido com um sobretudo de polietileno preto, podia divisar todo o movimento nas quatro direções. Precisava apenas espiar e esperar. Ele sabia que aquela era a hora. O tremor nos lábios, o olhar nervoso, a respiração ofegante denunciavam sua condição de completa submissão a um estado que ele próprio sabia não ser forte o bastante para superar. Tornara-se incontrolável. Não queria em sua sã consciência fazer aquilo, é verdade, mas tinha de fazê-lo. As ruas, os becos, a luminescência parda da noite, tudo ali contribuía e o incitava. Amainar sua ânsia era condição subjacente para diminuir seu estado de consciência deplorável naquele momento. Olhou o relógio: 2:36. Uma moto cruzou a rua em velocidade. Não se distraiu. Observou as casas pequenas e imaginou suas vidas, por trás dos muros, também pequenas.
Lembrou a primeira vez. Como em vídeo tape viu-se a si próprio esparramado no sofá a ver televisão. Algo o incomodava naquela noite. A insônia, talvez. Não sabia. Nunca soube. Era inverno. A chuva fina espelhava a rua. Viu seu semblante sereno, seu olhar tranquilo. Seguiu a si mesmo quando levantou e perscrutou a rua antes de abrir a porta. A rua em silêncio, estava agora nua. Caminhou a passos lentos encoberto pela sombra da noite. Na praça que ficava a poucos metros dali acendeu um baseado. Na primeira tragada, deliciando-se com o roçar dos lábios no papel num simulacro de beijo, aspirou a fumaça com volúpia abraçando-a em seu peito como alguém abraça a outrem de saudades e baforou observando a fumaça evoluir pelo espaço desenvolvendo movimentos aleatórios, dançando ao sabor da brisa e da imaginação, compondo imagens que só a puerilidade de uma criança é capaz de perceber. Ficou assim por minutos, saboreando o instante, deleitando-se com o silêncio, observando o farfalhar das folhas como se o tempo inerte estivesse. Ouviu vozes e risos. Inconscientemente circundou a árvore onde estava recostado para não ser visto. Não queria naquele momento traçar uma conversa inútil com pessoas, também inúteis, cheirosas a álcool. Acompanhou-os com a vista até desaparecerem do raio de visão.
Observou a fachada de sua casa deteriorada pelo desleixo, como a si. Isto o fez lembrar de que quando criança, naquela mesma casa, as mãos brutas de seu pai, o cheiro de álcool, sua mãe em lágrimas, sua mãe em dor. O fim. E o inferno que viria após este dia. Definitivamente precisava sair dali. Os vizinhos, aqueles móveis rotos, aquele cheiro amofinado, aquelas fotos de família simulando um lar feliz que não representava a realidade do que foi, o entediavam. Ficou imerso no não-ser de sua não-existência. Ao sorver sua última tragada não se deu conta de que alguém se aproximava e com um movimento de defesa rápido cravou suas mãos no pescoço e pressionando com força e violência não permitia reação. Nos olhos da vítima via a si próprio, via os dedos de seu pai num abraço mortal, via a dor de sua mãe, viu o temor que sentiu naquele e após aquele dia. Viu-se afastando-se  em silêncio e deixando atrás de si o silêncio do não-existir.
O silêncio foi quebrado. A linha tênue do tempo que une sonho e realidade foi rompida trazendo-o a realidade por passos na calçada. Olhou o relógio: 2:39. Espreitou e lançou-se como algoz, esganando sua vítima com força e violência sem permitir reação, sem temor ou tremor. Olhares fixos. Bocas mudas. Tudo como dantes.
Tendo o silêncio e a noite e a rua por testemunha, após poucos minutos, e com a quietude da vítima, lançou-a ao chão produzindo um som abafado. Na vítima, os olhos intumescidos pela dor e na boca um grito de dor... silenciado.
                Acendeu um cigarro, ajeitou o sobretudo de polietileno preto  e com a luz opaca da lua camuflando-o desceu a rua em silêncio fitando sua própria sombra na calçada molhada. Seus olhos serenos, não traziam raiva, não traziam medo, na boca o cigarro e um sorriso leve.

                A chuva fina que caía chorava a dor do não-existir.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Na sala de espera

Putz!... não faz isso, não! Você não gosta? Adoro. Por isso que eu faço. Eu gosto, mas aqui não. Por que? Tem muita gente. Eles não estão nem olhando. É? Mas é perigoso. Qual nada. Você já imaginou a vergonha? Estão todos no celular, ninguém tá olhando. Justamente, alguém pode estar filmando. E daííí, com essa tensão tudo fica mais gostoso. Eu sei, mas tome cuidado. Né gostoso? É. Mas...pare! Não! Aquela mulher ali da frente acho que percebeu. Qual? A morena gorda? Claro, só tem ela na nossa frente. Qual nada. Ela percebeu sim. Duvido. Veja como ela olha pra gente. Aposto que ela tá é gostando de ver. Tem muita gente aqui, hoje. Pare de se preocupar. Estou tentando. Deixe-me fazer de novo. Aperte devagar. Está gostoso? Demais. E você queria que eu parasse. Isso, circula e aperta. Você é danadinho. Número 23. É o seu? Não, o meu é 26. A gorda continua olhando. É? Olha o que eu vou fazer. Ei... ei... ela tá desconfiada. Relaxe que ela tá de olho fechado. Se você fizer isso ela vai ter certeza. Fique frio que tá todo mundo ligado na TV. E se ela fizer escândalo? Não vai, não. A gente sai daqui direto pra delegacia. Eu acho que ela tá se deliciando. E se tiver circuito interno e cair na internet? Que nada. Eu aposto como ela tá danada imaginando o que a gente tá fazendo. Que fique só na imaginação. Para, tira a mão dai. Por quê? Você tem que respeitar as pessoas. Que naaaada. É perigoso. O que quero é sentir o ... número 24. Porque você sorriu? Por nada. Ela olhou pra gente e sorriu. Número 24. E se ela achou que... a gente... 24. Não achei graça nenhuma. Se ela desconfiou é problema dela. Ela tá digitando alguma coisa. Esquece ela. Deve estar comentando com alguma amiga. Deixa de teu estresse. Humpf! Não tem ninguém aqui olhando pra gente. Ok, vou ficar bem. Relaaaxe. Tudo bem, tudo bem, vou relaxar. Ótimo, assim é melhor. E se ela viu a sua mão? Onde? Não sei, tô nervoooso. É claro que ela não viu nada. Viu sim. Viu não. Viu você com a mão aqui e desconfiou. Putz! Que neura. Será que foi porque você sorriu na hora do 24. Acho que sim. Seu senso de humor é ridículo. E você é um medroso. E você é um b.a.b.a.c.a. Mas você gosta. Claro que gosto. Então relaxe um pouco. Vou tentar. Feche os olhos. Tá bom. Os dois. Tô fechando. Veja como é bom. Aperta com mais força. Isso, mantenha os olhos cerrados. Como é bom... Número 25. A gorda saiu? Não. Qual o número dessa... gorda? Feche os olhos. Tô fechando. Beleza. Hum! Como é bom. Delícia né? Adoro isso. Vou mais rápido. Isso... Número 26. Ih, lascou tudo. O que houve? É o meu número. Lascou mesmo. E agora como é que vou levantar  e passar na frente dessa gorda. E eu sei lá. Caraca. Te vira, é contigo e a sorte. Eu disse pra você parar. Vou tomar um cafezinho. Não, não saia agora não. Número 26. Você levanta primeiro e vou atrás de você. Tá louco. Foi você quem começou isso tudo. Sim, mas você vir trás de mim, assim, é complicado. Seu babaca. Essa gorda vai pensar o que de mim?  Caraaaca. Te vira. Como vou levantar assim desse jeito... Número 26. Essa senhora vai na minha vez. Vai perder a sua vez?! A senhora pode ir no meu lugar. Você não quis me ajudar. Eu fico com o seu número. Qual o número dela? 69. 

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Poeticamente: Fragmentos de um dia qualquer.

Poeticamente: Fragmentos de um dia qualquer.: O coveiro naquele dia fazia a transferência dos ossos dos falecidos para o ossário a fim de liberar espaço nas catacumbas e permitir o ent...

Fragmentos de um dia qualquer.

O coveiro naquele dia fazia a transferência dos ossos dos falecidos para o ossário a fim de liberar espaço nas catacumbas e permitir o enterro de mais alguns desafortunados. Quando retirava os ossos de uma das covas, uma mulher aparentando uns trinta e tantos anos, morena, os beiços grandes pintado de vermelho, um metro e sessenta de altura, talvez menos, um bucho grande, trajando um macaquito verde-bandeira, bem acochado, um cinto marrom com uns cinco dedos de largura no meio do bucho, uma meia-calça preta, toma o crânio da mão do auxiliar e questiona:

_ Esta não é a cova do meu pai? estão fazendo o que com a cabeça do meu pai?
_ A gente só tava...
_ É MEU PAI. É A CABEÇA DE MEU PAI.
_ Minha senhora a gente só tava...
_ SÓ TAVA O QUÊ? O QUÊ? É MEU PAI. NEM OS MORTO PODE VIVER EM PAZ.
_ Num chore não mulé.
_ NUM CHORE NÃO O QUE? É MEU PAI. E VOCÊS TUDO VIOLANDO A CATATUMBA.
_ A gente só tava...
_ É MEU PAI.
_ Me dá essa cabeça sua destambocada. A gente tem que terminá nosso selviço. Toma essa cabeça dela, lerdo.
_ Oxe, porque eu?
_ Porque eu to dentro da cova.
_ N.Ã.O   T.O.Q.U.E   E.M   M.I.M.
_ Calma dona.
_ É MEU PAI.
_ Pega logo essa cabeça. Deixa de conversa com essa maluca.
_ NÃO TOQUE EM MIM COM ESSAS MÃOS PODRES.
_ E a senhora, com a cabeça encostada nesse peitão.
_ É MEU PAI.
_ Pega logo essa cabeça, home.
_ E se ela gritá.
_ Se você não pegá quem vai gritá sou eu. Peste, só me faltava essa. Me dá essa porra dessa cabeça.
_ VOCÊ ME RESPEITE.
_ Pegá ela, seu lerdo. Não, espera.
_ É prá pegá ela ou não.
_ Sim... Não... SIM. Mas me tire daqui primeiro. Vá por ali, dê a volta e vê se não cai nas cova aberta.
_ Se alguém tocá em mim eu dou escândalo. É MEU PAI.
_ De quem é essa cova que a gente abriu?
_ É de Zabumba. Então é a irmã de Beto. Eitxa, é a mulé de Bodinho. Liga pra ele.
_ Oxe, porque eu tenho que ligá se você é o coveiro e eu sou o ajudante.
_ Só me faltava essa peste dessa catenga gorda, inchada, me aperreá. Me dá o telefone.
_ Vôte, por que o meu?
_ Porque eu tô sem crédito, lástima.
_ Oxe! Então manda a prefeitura botá um telefone aqui.
_ É? Só se fô prá os defunto falá com tua mãe. Me dá logo o celular.
_ Num gaste meus bônus não.

_ É MEU PAI... 

terça-feira, 29 de julho de 2014

Não aconteceu como pensei que seria o que havia pensado.



A luz que penetrava pela fresta da cortina feria-lhe os olhos, despertando-o. Deitado, com o lençol cobrindo-lhe apenas o ventre e parte da coxa, tateou com o olhar o ambiente para identificar onde se encontrava. Não reconheceu. Os poucos móveis, a decoração sóbria, a cortina de um tom escuro, a TV desligada; Nada lembrava um lugar conhecido. A cama redonda o fez esboçar um olhar inquiridor. Isto o chateava. Detestava pensar ao despertar. Fazia-o lentamente, preguiçosamente. E perquirindo-se começou a pensar como fora parar naquele ambiente, até o momento desconhecido, e em qual companhia, que o despiu por completo.
Da noite anterior lembra de quando chegou ao apartamento de Adriano, seu amigo do trabalho, para comemorar junto com outros o aniversário daquele. Lembra que bebeu um pouco, acha, de uisque. Lembra de ter conversado com Carlos assim que chegou. Colega novo que começara naquele dia. Moreno de compleição mediana. Só o achou um pouco afemeado. Lembra do Antônio... da Luana... de Marcos e.. lembra, ainda, já no fim da festa de ter conversado com... Analice. Analice. Vizinha de sala no trabalho. Morena sinuosa, portentosa que permeia, volta e meia, suas lucubrações. Seus cabelos, negros, flutuam ao menor movimento. Seus seios fartos – adoro mamas grandes, pensou sorrindo, convidam a um olhar deleitoso. Nutria um desejo voluptuoso pelo seu sorriso. Aquela boca marrom carnuda que era do tipo que implorava para ser beijada. Desejava-a como dois amantes se desejam. Aquelas calças justas delineando a sensualidade sinuosa de seu corpo. Aquelas blusas fininhas, quase transparentes, exibindo detalhes de um desejo. A pele morena - suave, os pelos - poucos, descoloridos. Que inveja nutria por aquelas roupas que a cobriam por inteiro; quanto a mim, não me permitiam os escrúpulos nada além de desejos. A cada divagação sentia o pulsar intenso e quente a ponto, às vezes, de achar que iria romper a costura do jeans. O compromisso dela o inibia. Por vezes desejava esquecer a razão, desejava não ter escrúpulos. Por vezes lançava-se da mão na solidão etérea da edícula. À consciência, morte!, por não permitir desvarios. Refém de si mesmo é o que era. Assim, imaginar, então, é o que restava. Imaginar aqueles pelos se eriçando ao roçar suave de uma pedra de gelo sobre a coxa. Imaginar a boca sussurrante, arfante, ao roçar-lhe a língua em seu seio. Imaginar seus olhos semicerrados ao beijar-lhe o pescoço. Imaginar o contorcesse do corpo ao roçar a ponta do nariz suavemente sobre o abdome em movimento lento e rotatório fazendo-a sentir o calor da respiração. Imaginar o ambiente em harmonia com os paralelismos e perpendicularismos dos movimentos imitando um balé silencioso onde a música é ditada pela respiração e sussurros emitidos por bocas úmidas, lânguidas em um palco cuja plateia são os próprios corpos refletidos nus pelos espelhos. Imaginar ouvir sua voz maviosa pronunciar palavras ininteligíveis. Imaginar beijar-lhe a boca demoradamente sugando-lhe todo seu erotismo. Tudo isso excita-o sobremaneira deixando latente e visível esta condição.
O som do chuveiro aberto trouxe-o à tona. Sentou-se à beira da cama. O frio correu-lhe os ossos. Abraçou a si mesmo a fim de aplacá-lo. Ciscou o chão em busca de uma sandália que não existia. Pensou em ir espreitar pela porta sorrateiramente. A curiosidade por saber com quem havia dormido era forte. Teria sido Analice (musa das quimeras)?  Ou de repente... outra qualquer. Essa ausência de certeza o acabrunhava. Ouviu o som da torneira fechando, o silêncio do chuveiro e imaginou ela estendendo o braço, pegando a toalha e deslizando-a pelo corpo. Imaginou-se toalha. Mentalmente calculou quantos passos precisariam para sair do box e chegar até a porta. Ajeitou-se visualmente. Passou a mão no cabelo, fazendo às vezes de pente. Baforou na mão para sentir o bafo. Só fedia a uísque. Sentiu ela distender o braço, tocar o trinco, puxar a porta. De pé segurando o lençol sobre a cintura, cobrindo sua excitação, ensaiou um sorriso tímido antecipando o que queria ver. Ao abrir-se por completo a porta um sorriso pálido, amarelo, invadiu-lhe o rosto, os olhos abriram-se em estupefação, o lençol escorrega caindo-lhe sobre os pés, a boca abre-se em um misto de exclamação e interrogação e frustração e... e... Carlos!?

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Sobre um lugar qualquer


Sobre um lugar qualquer

Enquanto isso, n’algum lugar...

Os tons violáceos da madrugada subjugam-se ante a barbárie pictórica do alvorecer.

Aos poucos o que era informe assoma. O negrume desvanece e podemos ver um alpendre em madeira bruta sem pintura. Uma porta, entreaberta, com venezianas incompletas deixava à mostra um pouco do seu interior. Na janela uma cortina de tecido semelhante a um véu esvoaça ao vento deixando transparecer alguns rasgos e manchas amareladas. Os vidros, alguns quebrados, acumulam poeira. Da pouca mobília, e pobre, apenas pedaços. Pelo chão restos de cadeiras e recostada na parede uma mesa; sobre, um vaso com flores de plástico, uns poucos talheres e alguns pratos em cacos. Um sofá gasto pelo uso e tempo, uma mesinha de centro com algumas incrustações a faca e nas paredes, de um verde nauseabundo, algumas molduras vazias, tentando esconder, talvez, algo o que um dia não foi. Dependurado na parede em frente a porta um quadro retratava a santa ceia.

O chão pobre de pouca vegetação demonstra a acidez do lugar.

Nesse ínterim, n’outro  lugar ...

O sol pardacento derrama indolente sua preguiça sobre o chão pedregoso. Não há pegadas nem vestígios d’alma.

Algumas flores dispostas cuidadosamente no alpendre denotam o desvelo a aquilo o que um dia foi. A porta almofadada de um azul suave, aberta, convidava a observar. Na mesa coberta com uma toalha de renda alguns talheres e pratos zelosamente dispostos, como a esperar alguém. O sofá num canto e uma cadeira de balanço a observar a porta. As flores no jarro, sobre a mesa de canto, embebiam o ar com seu olor. Nas paredes brancas retratos de pessoas que marcaram a vida dali. Na janela envidraçada uma cortina branca confeccionada com um tecido leve, ao sabor da brisa matinal, balouça, de alegria, por certo.

As flores, mesmo sós, permanecem belas como devem ser.

sexta-feira, 4 de abril de 2014



Caía a tarde

Em lágrimas outonais sobre os telhados urbanos

Neste dia que já se

Fez saudade

Acariciando a face nua da rua e

Embebendo a todos com sua

inquietante melancolia



a noite que chegava em nuances pictóricas

por trás dos arranha-céus

com suas antenas e para-raios

seria, talvez,

um refúgio para tantos

que cansados de si mesmo

tentam esconder-se

de suas inquietações

em vão

Da vida nada urbana, uma visão.




 _Alô, é da rádio? 
A voz soou agressiva e apressada. E sem dar tempo para o outro lado se manifestar arrematou...cansei, minha senhora, cansei de ligar pra poliça... e ela me dizê que num pode fazê nada. Porquê? ... Eu sei. Sabe porquê? Porque nóis é pobe. Tá me entenden’o. A sua voz ficava cada vez mais nervosa. Óie, passei a noite toda ligando pra poliça, ta me entenden’o. Esse fi da gota serena fica fazen’o bagunça aqui na rua, na minha janela, todo dia. E num é de hoje não. Tá me entenden’o. Sou trabaiadô, moça. Acordo todo dia cum galo cantan’o, e esse poliça preguiçoso diz que tá sem viatura. Venha de ônibus, ôxe. Eu vô trabaiá de ônibus. A gente aqui tamo revoltado. Todo dia esses maconhero perturba nóis aqui dizen’o que vai matá a nóis. Que vai esfolá nóis. Que quem manda na rua é eles. Pois, quem vai matá hoje sou eu. Vociferou gesticulando os braços. A poliça nunca feiz nada. Mas hoje vô matááá. To cum ele todo amarrado aqui no oreião, e vô acabá cum a raça desse fio da besta preta. Ofegante. Ói, adescurpe, moça. Eu tô aperreado. Minha mulé foi s’imbora, levô meus fio, levô até meu cachorrim. E ainda vem um fi da égua desse fazê bagunça na minha porta. Eu num vô matá? Vô. Ói, tô disimpregado. Desde qu’ela foi s’imbora minha vida se distrambelhou. Tô disimpregado. Num tenho istudo... Mas sô trabaiadô, moça. Num fumo maconha, não. 
Do outro lado da linha alguém balbuciou algo como “tenha calma”. 
_Carma, nada. Esse fi da besta preta faz bagunça aqui na rua há muito tempo, ta me entenden’o. Óie, tomei uns goró de noite e agora vô arresorvê na bala, do meu jeito. Se num tem poliça eu arresorvo na bala. Carma, nada. A sinhora só sabe dizê isso. Carma... carma... carma coisa ninhuma. Minha vida já tá esculhambada, mermo, vô esculhambá  o resto. Ói, eu gostava muito daquela nega. Ela mexia bem cum’s meu negoço... tu é mulé, tu sabe do chamego. Aquela mulé num podia tê me deixado. Ói, ela levou meus cinco fio. Pense nuns calanguim arretado. Nesse ínterim formou-se um ajuntamento ao derredor com gritos de mata, esfola, e onde a raiva de alguns contrastava com o olhar de penúria de outros. A turba é burra. Enquanto isso, no chão, amarrado a um orelhão com uma cara de desespero um rapazote de uns 17 anos rogava amedrontadamente: num me mate, não. Por favor. Meu pai tem uma loja no comércio. Eu sou de menor. Meu pai te dá um emprego. Ele é vereador. Ao mesmo tempo o clamor misturava-se ao ódio. Me solte seu corno. Sua mulé foi s’imbora porque você é froxo. Eu vou te matá, seu véio maluco. 
MAAATA! MAAATA! 
O tumulto só crescia. Olhos e bocas num afã. A televisão já chegara, os repórteres de rádio, o carrinho de picolé, o de CD pirata, os insultos, os apupos, as palavras de ordem. Todo esse burburinho deixava o agressor e vítima mais nervosos. Saiu na mídia não tardou para a polícia chegar com as sirenas em alarde tentando dispersar a populacha. Em vão. O agressor, com o revolver em punho, esbravejava: eu vou matáááá. E a populacha convulsionava: maaata! Maaata! Esse safado me aperreou a noite toda. Minha mulé foi s’imbora, levou todos meu fio, até meu cachorrim. Lágrimas. Agora eu vou matáááá, gritava batendo a arma no peito. Enquanto isso, no chão, amarrado ao orelhão, a vítima, com o estupor estampado na cara, os olhos esbugalhados como que antevendo os pássaros da morte golpearem sua porta, como que sentindo as dores pela surra que talvez venha a levar, como que sentindo o aço do projétil perfurando-lhe a pele, cortando-lhe a carne, dilacerando-lhe os órgãos, como que sentindo o sangue escorrendo-lhe em profusão ensopando-lhe a camisa já rota pelo uso, como que sentindo os músculos desobedientes fraquejarem, as pernas indolentes curvarem-se sem forças e cair com todo o peso de joelhos como a pedir perdão ao seu agressor, e como que de supetão, em morte, pela dor última, meter a cara no chão. 
Mas ao mesmo tempo a presença da polícia recobrava-lhe o ânimo. Renovava-lhe a esperança. Me ajudem pelo amor de deus, rogava. Esse filho da puta tá doidão. Tá maconhado. Eu não fiz nada. Meu pai é rico, ele é vereador. Quase que instantaneamente o agressor vociferava: Vô te matááá, fi d’uma égua. Larga a arma! Ordenava a polícia. Maaata! Maaata! Ecoava. A vítima choramingando repetia: meu pai é rico, moço. Ele te dá um emprego. A polícia ordenava. Eu liguei várias veiz a noite toda e vocês num viero. Esbravejava agitando os braços. Todos ao mesmo tempo em ordens, em lamúrias, em ameaças, dificultava a comunicação, acirrando cada vez mais os ânimos. Levava a ira. Os gritos de maaata. As ordens de calma. O tempo passando. O sol das dez horas. Os gritos da populacha. Os policiais nervosos. A vítima. O agressor. A televisão. O rádio. As crianças. O vendedor de CD pirata. A polícia. O agressor de arma em punho ameaçante. A vítima em desespero, ora choramingante, ora desafiante. Os gritos. A polícia. O sol das onze horas. O agressor de arma em punho com os olhos em vermelho sangue, a boca em impropérios. A polícia. A vítima em desespero. O sol causticante. A televisão. A multidão. O agressor.  Eu vou matááá! A polícia aproximando-se. A multidão. Os gritos. Os olhares. O desespero. O vendedor de CD. O agressor. A arma apontada para a cabeça. A vítima. O olhar em desespero. A polícia. O agressor. A televisão. O rádio. A vítima. Meu pai é rico. O coro. Maaata! Maaata! Largue a arma. A polícia. O agressor. Eu vou matááá. Gritos. Largue a arma. Eu vou matááá! A polícia. Um estampido. O agressor. Um grito. A correria. A televisão filmando. O agressor. O sangue explodindo em jatos. A queda estatelada com a cara no chão. O rosto em dor. O agressor. Um tiro no peito. Os olhos arregalados pela dor. O sangue. A morte por fim. A televisão. A vítima. Um sorriso de alívio respingado de sangue. Um olhar ainda amedrontado. Uma cusparada no chão. Uma cutucada de pé. Uma imprecação. Um sorriso de deboche e uma exclamação: Taí, otaro, fudeu-se.